terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Entrevista a Rubén Noé , primeiro transexual que engravidou de gémeos




A nm foi a Barcelona falar com o transexual que andou na «boca» dos espanhóis por ter sido o primeiro no mundo a engravidar de gémeos. Rubén Noé Coronado não vê porque não há-de aproveitar o que a natureza lhe deu e que ele ainda mantém: trompas, útero e ovários (e vagina), que só extrairá do seu corpo quando conseguir ter o filho ou filha que quer. Tentou uma vez, por inseminação artificial (IA), sem sucesso. O aborto aconteceu às 17 semanas de gestação, em Março passado. Eram gémeos, não sabe de que sexo. Recomposto da perda, está a tentar uma nova gravidez por IA, na mesma clínica, em Barcelona, a única que o aceitou - foi a 15 e enviou emails a todas as 155 de Madrid, a maioria recusou-o e muitas ignoraram-no, nem se deram ao trabalho de lhe responder. Isto, apesar de em Espanha a lei que regulamenta as técnicas de procriação medicamente assistida permitir que pessoas como Rubén acedam à inseminação artificial.




A sua decisão gerou imensas rejeições. Muitas pessoas dizem que com a gravidez o que procura é a fama e ser notícia na imprensa...

As pessoas podem dizer o que quiserem. Sei o que desejo, o meu objectivo está muito bem definido. Sejam quais forem as críticas que me fazem, positivas ou negativas, a minha consciência está tranquila. Não faço caso do que dizem, senão ia-me abaixo.



Como é que consegue não fazer caso dos insultos?

Há muitas maneiras de reagir às situações. Tento defender-me, não fazendo caso. Sei que não posso viver numa redoma, por isso aprendi a viver em sociedade, a dar-me com todo o tipo de pessoas, o que inclui, naturalmente, sobreviver às rejeições. Comecei a interiorizar isso quando iniciei o meu processo de mudança de sexo. A transexualidade ensinou-me que não posso ser aquilo que as pessoas esperam que eu seja, ensinou-me que o mais importante é aquilo que eu quero, o que quero alcançar, onde quero chegar e que tenho de percorrer esse caminho, com ou sem ajuda. Cada um de nós tem de tomar as suas próprias decisões, o que exige estarmos preparados para as consequências. As pessoas dizem-me coisas muitos insultuosas, é verdade, enviam-me emails, escrevem comentários no meu blogue sob a capa do anonimato...



Estive a ver o seu blogue. Não fala da transexualidade nem da gravidez, apenas dos seus animais...

Ultimamente não, porque agora quero estar mais tranquilo. Estou a preparar-me para fazer outra vez a inseminação artificial e penso que serei mais bem sucedido se estiver sossegado, sem perturbações. Embora eu tente passar por cima das coisas desagradáveis que dizem, não me são totalmente indiferentes, mexem-me um pouco com os nervos.



Sente que deve dar explicações ao mundo?

Sobre a minha transexualidade e a minha vontade de engravidar, não, não acho que deva explicações a ninguém. Em todo o caso reconheço que tanto uma como outra são questões sensíveis, talvez por serem ainda invulgares.



Na rua também o insultam?

Na rua os comentários são geralmente positivos. De pessoas que dizem admirar a minha determinação e coragem. Sabe, há muita falta de frontalidade, quem diz mal não mostra a cara, não diz o nome, e quem ofende menos ainda. Os comentários negativos são quase sempre anónimos.



Estava de dezassete semanas quando abortou. Por algum problema específico?

Não. Tenho epilepsia que, como deve saber, faz com que a minha fosse uma gravidez de risco, mas não foi a causa do aborto. O problema residiu no facto de serem dois bebés e eu não ter espaço suficiente na minha barriga para eles se desenvolverem. O meu médico explicou-me que isso sucede em certos casos de gravidezes gemelares, a barriga não se expande, provocando asfixia nos fetos e em consequência o aborto. Foi um aborto natural.



Conhecia o sexo dos bebés?

Não. A imprensa espanhola especulou muito, houve quem dissesse que eram rapazes, mas na verdade nunca o soubemos.



Tem preferência?

Não. Também se especulou muito sobre isso, que eu preferia meninos e a minha namorada meninas. Não é verdade. A mim, a nós, tanto faz. Quero é ser pai, esse é o meu objectivo. Esperanza já tem dois adolescentes rapazes, o mais pequeno tem 14 anos e o mais velho 16. Não vivem connosco, por isso não temos essa experiência de criar filhos juntos.



Seria «pai» nesta altura, se não tivesse abortado?

Sim, a esta hora estaria com os dois ao colo [longa pausa]. O parto estava previsto para finais de Setembro.



Como reagiu ao aborto?

[Suspende a respiração] Mal, muito mal. Tive que fazer terapia para ultrapassar a situação. Não foi bem uma sensação de perda o que senti, porque a minha barriga não chegou a ficar grande ao ponto de se notar que algo estava a crescer lá dentro, foi mais a angústia de me confrontar com o adiamento de ser pai, um desejo muito forte em mim. Não sei, não sei definir o que senti. A clínica ajudou-me muito nessa fase, disponibilizou-me uma equipa multidisciplinar composta por um ginecologista, um endocrinologista, um psicólogo e um psiquiatra, que me acompanham ainda hoje. Aliás, é também com base na opinião destes especialistas sobre a minha condição física e psicológica que se «decidiu» se estaria ou não preparado para me submeter a mais um processo de inseminação artificial.



E está?

Sim, e já estou a tentar engravidar outra vez. Quando é que sai esta entrevista em Portugal? Dezembro. Se calhar, nessa altura já estarei grávido outra vez [Rubén prometeu que nos informaria, mas até ao fecho desta edição não recebemos notícias]. Os meus médicos dizem que estou preparado, que não é nada do outro mundo. Da primeira vez não usei medicação, e desta também não. Estou a tentar engravidar da forma mais natural possível, à excepção, claro, do facto de me introduzirem o esperma no meu aparelho reprodutor. Tudo o resto é natural, não é por acção de medicamentos. Não há estimulação da ovulação através de fármacos.



Onde arranjou o esperma? Há quem o compre na internet...

Na internet? [mostra-se surpreso] Não, não. Recorri a um banco, é de um dador anónimo.



Prefere não tomar medicamentos porquê, se a probabilidade de engravidar é maior?

Eu não sou infértil, não preciso de fazer estimulação da ovulação. Está tudo bem comigo, eu posso engravidar, tenho ovulação desde que parei de tomar hormonas, a testosterona. É por isso que prefiro que seja tudo o mais natural possível. Mais natural do que isto só se dormisse com um homem. Mas não quero deitar-me com um homem para engravidar, para mim é muito difícil «fazê-lo» com um homem. Além disso, quero evitar as complicações legais que poderiam surgir caso esse homem viesse mais tarde reclamar o direito de paternidade ou a custódia da criança. Essas «coisas» dão sempre problemas. Mais: por ser uma gravidez mediática, o «pai» poderia eventualmente aproveitar-se e querer retirar dividendos da situação. Não. A opção mais viável foi recorrer a uma clínica de reprodução medicamente assistida. Faço a inseminação com sémen proveniente de um banco de esperma, e pronto, é simples.



Sempre desejou ter filhos ou só pensou neles depois de conhecer Esperanza?

Sempre foi um desejo, nunca quis abdicar da possibilidade de ser pai.



Pai?

Sim, pai. Sou um homem. Um dos momentos mais difíceis dos transexuais masculinos é aquele em que temos que decidir se queremos ser estéreis ou não. A tendência nos transexuais tem sido a de retirar os órgãos reprodutores, mas eu decidi adiar essa cirurgia precisamente porque pensava que se um dia quisesse ser pai poderia sê-lo. Por que havia de tirar o meu útero, os meus ovários, as trompas se queria ter filhos? Por ser transexual? Por querer ser homem? Por ser homem? Um dia irei retirá-los, sim, mas só quando tiver um filho ou filha. Além disso, o meu endocrinologista disse-me que eu podia interromper o processo de esterilização e adiar a cirurgia de redesignação do sexo. Quando conheci Esperanza, a minha companheira, muitas coisas vieram-me à cabeça, entre elas o facto de Esperanza ter dois filhos já crescidos - o mais novo, Pablo, tem sindroma de Asperger e por esse motivo está num centro hospitalar. O mais velho optou por viver com o pai em Málaga, é lá que estuda, é lá que tem os amigos. Nós gostávamos de ter juntos a experiência de ter um filho, como qualquer casal. Basicamente o que queremos com a minha gravidez é isso.



Esperanza não pode engravidar?

Seria demasiado arriscado. Esperanza padece de retinopatia pigmentária, não pode fazer esforços, e com o esforço do parto poderia cegar.



Adoptar não é uma possibilidade?

Considero-me qualificado para criar um bebé. Não me considero capacitado para criar um menino adoptado, que já tem uma bagagem pesada cheia de problemas, traumas. Sei como é, também fui adoptado. Sabe, quando se é adoptado não existe essa coisa de perguntar «quem sou? de onde sou?, para onde vou?» e isso é terrível para uma criança, não saber nada ou saber muito pouco da sua vida, do seu passado, dos seus pais. Adoptar está fora de questão. Um filho nosso, à partida, não desenvolverá o tipo de traumas de um menino adoptado.



Não desenvolverá outros? Não o preocupa os eventuais problemas que a criança possa ter quando souber que o pai afinal é a mãe biológica?

Por essa razão não vejo por que terá problemas. Em todo o caso, penso que são situações incomparáveis, a de um menino nascido e criado no seio de uma família atípica e a de um menino adoptado. Tenho para mim que os traumas das crianças adoptadas estão muito associados ao desconhecimento da realidade, não encontram resposta para as perguntas que têm na cabeça. Qualquer tipo de trauma, seja ele qual for, deve-se em grande medida ao desconhecimento de uma parte da verdade. Isso não acontecerá com o meu filho, ele vai saber de tudo na altura certa, à medida que for crescendo e for capaz de compreender. Independentemente de uma criança ser filha de um casal homossexual, de um casal de lésbicas, de uma mãe solteira ou de um casal atípico, como eu e Esperanza, o importante é proporcionar-lhe um ambiente familiar estável, sólido, com muito carinho e amor, para que seja uma criança feliz e tenha um desenvolvimento normal. Nós podemos garantir isso a um filho nosso. Não haverá melhor pai do que eu no mundo. Não há ninguém com autoridade nem legitimidade para questionar a minha paternidade nem a minha capacidade de ser um bom pai.



Quando iniciou o processo de mudança de sexo?

Em Agosto de 2002.



Quando se apercebeu que tinha um problema de identidade?

Foi uma descoberta. Descobri que era transexual quando saí da aldeia onde nasci e fui para Madrid. Saí de casa aos 18 anos, tinha um passado de inadaptação social; em casa as coisas não eram melhores, não me sentia compreendido pelos meus pais. Em Madrid fui dar com uma associação, não interessa agora explicar porque razão, e lá uma funcionária, ainda me lembro do seu nome, Ana Franco, disse-me claramente, sem papas na língua: «O que tu tens tem um nome, chama-se transexualidade». Sugeriu-me que fosse à AET - Associacion Española de Transexuales, onde encontraria ajuda e informação para as dúvidas que tinha em relação ao que sentia. Fui à AET e aí aprendi que a transexualidade era uma realidade e, mais importante, que me identificava com todas aquelas pessoas, que esse era o meu caminho.



Até aí como se sentia com o corpo de mulher? Nunca desconfiou de que poderia ser transexual?

Não, essa palavra não existia no meu vocabulário, não sabia que a transexualidade existia. Em relação ao meu corpo, não pensava nele, não tinha consciência daquilo que eu era. Quando não conhece uma realidade, não pensa sobre ela, certo? Foi o que me aconteceu. Não pensava nisso, simplesmente. Não me preocupava se era mais masculino ou mais feminino, só sei que me sentia estranho e isso, sim, era um conflito para mim. Mas eram tantos os meus conflitos, que de todos esse era o menos importante.



Não namorava?

Não, enquanto mulher nunca tive namorados nem relações sexuais. Mantinha-me em absoluta asexualidade. Era uma pessoa anti-social, não saía com os colegas, não praticava desporto fora da escola, convivia somente com a minha cadela e os meus pais. Eles levavam-me para todo o lado com eles, mas eu não conseguia interagir com as pessoas. Na escola falava com os colegas, mas mesmo aí mantinha-me recatado, afastado.


O que fez assim que descobriu que era transexual?

Primeiro, tive que entender o que se passava comigo, que afinal não era o que socialmente as pessoas pensavam e esperavam de mim. Depois de «digerir» a situação, tive que aceitá-la, procurei ajuda. Encontrei-a na Fundación Sexpol [Associação para o Desenvolvimento da Saúde e do Bem-Estar Sexual, em Madrid], porque era o único sítio onde poderia receber acompanhamento psicológica gratuito (nessa altura não tinha dinheiro, não poderia pagar esse apoio). Na Sexpol disponibilizaram-me um psicoterapeuta, que me seguiu e diagnosticou, disse-me que o meu problema era um problema de género e encaminhou-me então para um endocrinologista que me receitou as hormonas de testosterona. A partir daí iniciei o processo de mudança de sexo.



Quando começaram a surgir as primeiras transformações?

Não demoraram muito tempo. Na transexualidade masculina as mudanças acontecem depressa. A testosterona tem uma actuação bastante rápida. No segundo ou terceiro mês notei uma alteração da voz, tornou-se mais grave, fiquei com voz de homem como se costuma dizer. No quarto mês este osso aqui [aponta para a maçã de Adão] começou a ficar saliente. No sexto mês surgiram-me pêlos na cara, no peito e nas pernas, esse tipo de coisas. Pouco a pouco, foram-se passando coisas no meu corpo que me fizeram sentir mais eu. É uma alegria verificares a cada dia que passa as transformações no teu corpo e sentires que agora sim, começas a identificar-te com aquilo que vês no espelho. No espelho e não só, cá dentro também, sentes que estás a ir pelo caminho certo e que tudo vai ficar bem contigo. [ri] Cada pelito novo que nasce na cara é uma alegria, significa muito.



Pouco depois conheceu Esperanza...

Quando vi Esperanza a primeira vez foi numa festa, senti logo qualquer coisa por ela. Ela não me ligava, dizia que eu era ainda um menino. Eu já era fisicamente um homem, mas temos uma grande diferença de idades (tenho 26 anos, ela tem 43). Começámos por ser amigos, trocávamos correspondência, escrevíamos emails. Esperanza continua a dizer-me que não se enamorou logo por mim, mas investigou-me na internet para ver se eu estava no Facebook, no Hi5. Ela achava-me graça e sobretudo persistente – eu telefonava-lhe todos os dias, mandava-lhe emails. Conquistei-a.



Esperanza foi a primeira namorada?

Não, tive três namoradas antes. Elas sabiam da minha transexualidade, claro, e tiveram problemas com isso. Despertei para a sexualidade apenas a partir do momento em que descobri que era transexual. Antes de ser transexual, não tive relações com ninguém, não tive namorados, não me interessava.



Nem com a gravidez se sentiu mulher? Saber que dois bebés estavam a crescer dentro de si... Como se sentia?

Feliz. Sentia-me feliz. Os meus objectivos são muito claros. Quero ser pai e se para isso tenho de utilizar o que a natureza me deu, não vejo problema algum. Vivi todos os momentos em que estive grávido com muita emoção, muita alegria e expectativa, mas nunca me vi grávido, porque não cheguei a ter a barriga muito grande. A expectativa sim, era grande. Esperanza e eu passávamos pelas lojas de produtos para bebés e ficávamos parados a olhar para as montras. Víamos coisas muito bonitas e ficávamos ali, a escrever uma lista na nossa cabeça das coisas que tínhamos de comprar.



Compraram alguma coisa?

Não. Tínhamos medo. Esperanza disse-me que até ao sexto mês não devíamos comprar nada para o bebé, que não era o momento. Suponho que era por superstição, mas também em parte porque ainda não sabíamos onde seria a nossa morada definitiva. Se nos mudássemos, seria melhor não termos que transportar muita coisa. Além disso, eu estava sempre muito agoniado, não tinha muita disposição para andar às compras.



Como reagiram os seus pais à transexualidade e à gravidez?

São muito antiquados. Em relação à transexualidade, a minha mãe acabou por aceitar, o meu pai não, nunca conseguiu, o que, naturalmente, levou a que nos afastássemos mais, raramente falamos, as conversas que temos são cordiais sem serem amigáveis. Com a minha mãe a relação era mais tranquila - ela morreu em Setembro do ano passado, antes da minha gravidez. Não sei como ela reagiria a isso. O meu pai julgo que soube da minha gravidez, mas como não temos uma relação de afecto não lhe perguntei o que achava e ele também não me disse.



E o resto da família?

Não tenho irmãos, tenho tios e primos, falamos de vez em quando. Não quero que se metam nos meus assuntos, por isso não alimento conversas sobre a minha vida privada. Também não me meto na deles. Prefiro assim. Quero viver sem sobressaltos, com tranquilidade. Cada um segue o caminho que tem de seguir. Eu quero-lhes bem, gosto muito deles e eles de mim, estou certo disso. Ainda no outro dia estava ao telefone com uma tia, disse-lhe que ainda tenho o palhaço que ela me ofereceu quando eu tinha cinco anos. Prefiro que os meus familiares se mantenham à parte deste processo, para que não sejam incomodados.



Em todo o caso, não lhe faz falta essa retaguarda familiar?

Mas que melhor apoio poderia eu desejar senão o da minha mulher? Não sou ainda casado com Esperanza, mas ela é a minha mulher, é a minha companheira. E como casal, queremos ter um filho juntos. Não é isso que querem os casais? O apoio que precisamos é um do outro. É disso que precisam os filhos, que os pais se apoiem, gostem um do outro, se tratem bem, que tenham uma vida conjugal de afectos. Ponto. Se isso não existir num casal, então não são um casal. A minha gravidez é tão complexa – quero dizer, complexa socialmente, porque as pessoas têm dificuldade em entendê-la e aceitá-la –, que o melhor é evitar todo o tipo de pressões sobre este assunto.



Chegaram a pensar em nomes para os bebés?

Quando estava grávido sim, pensamos em alguns nomes de menino e de menina. Desta vez não, vamos esperar. Não quero especular...



E o seu nome, escolheu Rubén Noé porquê?

Estefánia é um nome comprido, chamavam-me Fanni e eu não gostava. Então, para evitar que os outros adoptassem diminutivos feios, procurei um nome curto. Pensei em Noé. Só que Noé confundia-se com Noemi, Noeli, era ambíguo, tanto dava para homem como para mulher. Lembrei-me de um nome mais masculino, que não levantasse dúvidas. Rúben. Rubén Noé. É nome de homem.



Acabou de mudar de casa e de cidade. Da pequena localidade de Berga passou para a grande Barcelona. Porquê?

Gosto de Barcelona, é uma cidade aberta. Madrid também poderia ser uma opção. Corri praticamente toda a Espanha vivendo num sítio e noutro com a minha namorada, e dos sítios por onde passámos, Barcelona foi a cidade de que mais gostámos. Ela é funcionária da ONCE [Organización Nacional de Ciegos Españoles], o que a obriga a deslocar-se com frequência e eu acompanhava-a, porque a minha profissão - sou carpinteiro e faço algum trabalho de vigilância – posso exercê-la em qualquer lugar. Neste momento estou desempregado. Chegámos agora a Barcelona, ainda não encontrei trabalho.



Acha que aqui em Barcelona vai viver mais tranquilo? Será mais fácil a um homem grávido passar despercebido?

Despercebido não diria, mas aceite sim. Se a minha preocupação fosse passar despercebido, então teria ido para Madrid. Barcelona é uma cidade aberta a toda a diversidade, as pessoas são mais tolerantes, e do ponto de vista dos acessos praticamente nenhuma cidade em Espanha oferece tantas vantagens nem tantas condições para pessoas com dificuldades de visão como Esperanza (é uma cidade plana). Barcelona tem tudo para sermos felizes. Penso que aqui poderei andar na rua sem o olhar das pessoas fixo em mim como se fosse de outro planeta. Olharão para mim e pensarão que sou um homem gordo, com uma barriga proeminente.



As pessoas com quem se cruza na rua reconhecem-no dos jornais e da televisão como o transexual que engravidou de gémeos?

Algumas pessoas reconhecem-me, são simpáticas. Algumas perguntam-me: «Você é o homem grávido? Vi-o na televisão...». Eu digo que sou, claro. As pessoas olham para mim e ficam de boca aberta, porque vêem um homem, acham inacreditável que eu seja aquele grávido, não acreditam que eu nasci mulher. Mais dia menos dia a sociedade vai ter que mudar e aceitar que há outras realidades distintas daquela em que vive a maior parte das pessoas. Há mundos mais pequenos que também existem.



Como é que a sua gravidez se tornou pública? Foi o Rúben que a divulgou aos jornalistas?

Não.



Foi a clínica?

Não, não creio que tenha sido a clínica, porque uma das condições sine qua non que a clínica me impôs para aceitar fazer-me a inseminação foi o anonimato.



Então o que terá acontecido?

Não faço ideia. Sei que um dia me telefonaram de um jornal e me disseram: «Sei que está grávido, gostaria que me concedesse uma entrevista». Hesitei, mas insistiram, acabei por aceitar. Sabe, tive receio de que se não falasse, se não expusesse as minhas razões, alguém faria isso por mim, dando azo a especulações e mentiras. Por outro lado, pensei que a exposição do meu caso seria uma forma de ajudar outras pessoas, outros transexuais que estariam a viver a mesma situação em silêncio.



Serviu-lhe de alento o caso de Thomas Beatie, o transexual americano que já vai no segundo filho, de uma segunda gravidez?

Eu sempre desejei ter filhos e teria engravidado mesmo que mais nenhum transexual antes de mim o tivesse conseguido. De resto, o caso dele não me serviria de alento porque as pessoas complicaram-lhe a vida. Eu apenas fui insultado, mas ele recebeu ameaças de morte.



Acha que no futuro haverá muitos casos como o seu e o de Thomas Beatie?

Não tenho dúvida disso. A sociedade muda, evolui. Tem de evoluir. Acho até que deve haver outros casos anteriores ao de Thomas Beatie, simplesmente mantiveram-se fora da comunicação social. O meu caso e o caso de Thomas Beatie será assim tão diferente dos de homens e mulheres que são pais e mães e a dada altura da sua vida mudam de sexo? Há pessoas que descobrem e assumem a sua transexualidade depois de terem filhos. Esses casos existem. Não se pode ignorá-los. Não são novidade, simplesmente parecem invisíveis, interessa a uma sociedade que tem medo da mudança, não interessa vê-los. Penso que no futuro estas situações não serão consideradas aberrações. Eu não sou uma aberração. Já fui abordado por um transexual masculino como eu que também queria engravidar e não sabia o que fazer. Creio que o importante na minha exposição pública é abrir portas e criar opções, esclarecer quem vive uma situação semelhante.



Há pessoas que lhe escrevem no blogue a dizer que estão a viver a mesma situação?

Não, no blogue os comentários geralmente são anónimos e quase todos para me insultar.



Acusam-no de zoofilia. Que história é essa?

É um absurdo. Gerou-se uma polémica à volta de uma fotografia com os meus animais que não passa de uma ilusão óptica. Não sei se viu a foto. As pessoas vêem o que querem ver.



Se engravidar outra vez e levar a gravidez até ao fim, juridicamente quem vai ser a mãe?

Eu. Todo o processo está a decorrer como eu sendo mãe solteira.



Mantém o nome de baptismo no cartão de identidade?

Sim [mostra o passaporte].



Aos olhos da lei o Rubén é uma mulher. ..

Exactamente.



Então, nada na lei espanhola [Lei 14/2006, de 26 de Maio sobre as Técnicas de Reprodução Humana Assistida] o impede de recorrer à inseminação artificial...

Está tudo conforme a lei, caso contrário a «minha» clínica não me aceitaria.



Se o Rúben vai ser legalmente a mãe, Esperanza será o quê para a criança?

Na prática, será a mãe. Para nós não há qualquer confusão. Aos olhos da lei, eu sou a mãe, sou a mãe biológica. Mas «dentro de casa», que é como quem diz, na nossa vida diária, quem decide esse papel sou eu e Esperanza. Vamos construir a nossa família como tantas outras o fazem. Para a criança eu serei o pai, Esperanza a mãe. E quando chegar a altura certa, dir-lhe-emos a verdade, explicaremos tudo. Não há que haver confusões. Além disso, depois do parto continuarei o tratamento hormonal com testosterona e farei a cirurgia de redesignação sexual. Serei um homem por inteiro. E quanto ao meu nome de baptismo, depois da cirurgia poderei mudá-lo [no Registo Civil].



Vai ser fácil explicar isso a uma criança?

Acho que as crianças entendem as coisas de uma forma mais simples e aceitam-nas mais facilmente.



O seu corpo é então um instrumento para atingir o objectivo de ser pai?

O meu corpo não, os meus órgãos reprodutores. E quando esse objectivo estiver concretizado, então sim, estarei preparado para extrair tudo o que ainda me resta de mulher, farei a cirurgia para retirar o útero e os óvarios e a cirurgia de redesignação de sexo. Nessa altura sentir-me-ei completo.



Em que clínica está a fazer a inseminação artificial?

Não posso revelar. Foi esse o acordo que fiz com a clínica.



Porquê? A clínica tem receio de que a classe médica em peso lhe «caia» em cima?

Não é por isso, é porque quer manter a privacidade dos outros pacientes. Nenhum casal deseja chegar à clínica para fazer um tratamento e deparar-se com cinquenta jornalistas à porta. Uma clínica deste tipo tem que garantir privacidade. Sendo a minha gravidez uma gravidez mediática e polémica, alguém poderia lembrar-se de fazer manifestações em frente à clínica. Há outra razão: fui inserido num estudo clínico, pelo que o nome da clínica não deve mesmo ser divulgado



Tentou outras clínicas antes dessa?

Muitas. Pessoalmente fui a 15 e enviei emails a todas as 155 clínicas [de Procriação Medicamente Assistida] existentes em Madrid. Todas me disseram que não, que era imoral, que não era ético. Outras nem sequer me responderam. Esta foi a única que me aceitou.



Quanto dinheiro já gastou na inseminação artificial? A imprensa espanhola falou em 16 mil euros...

Não é um processo barato, mas não chega a esses valores. Gastei muito menos. Não me importava de dizer-lhe quanto, simplesmente não posso, porque o valor identifica a clínica. Cada uma tem o seu preço.



Quem paga?

Nós. Eu e Esperanza, quem mais?



Gostaria que me falasse um pouco do seu passado. Viveu num orfanato, foi adoptado mas só o soube mais tarde...

Soube quando tinha sete anos, por um colega da escola. Eu vivia numa localidade muito pequena, toda a gente sabia da vida de toda a gente. Fiquei a saber assim. Fui logo para casa e perguntei à minha mãe se era verdade. Com o passar do tempo, essa revelação não me saía da cabeça e então decidi procurá-la, saber quem era a minha mãe biológica. Encontrei-a, mas nunca falei com ela. Apenas quis saber quem era. Porquê? Porque entendo que a procura da identidade só vale a pena se formos capazes de a aceitar, de a digerir. Eu não sei se seria capaz disso. Em todo o caso, não tinha necessidade de conhecê-la. Saber quem era sim, conhecê-la, falar com ela, não. Eu sou um bocado assim: se preciso procuro, se não preciso fico quieto, deixo como está. Eu sei a minha história. A minha história é a história de uma gravidez indesejada, complexa, de uma menina de 17 anos nos anos 60 que não teve condições para me ter e então fui parar a um orfanato e mais tarde a casa de uma família que me acolheu.



A imprensa irá certamente disputar as primeiras fotografias do seu futuro bebé. Vão ter um preço, essas imagens?

Há que reconhecer que essas não serão umas fotografias quaisquer. Essas fotos terão um preço, sim.





Eurico Reis



«A lei deve ser alterada»



Um caso como o de Rubén não é permitido legalmente em Portugal. Não por ser transexual, mas porque a legislação apenas permite o acesso às técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA) a casais heterosexuais inférteis, casados ou em união de facto registada, e com um projecto parental. Mulher solteira, fértil ou infértil, que não tenha parceiro ou não queira ter relações sexuais com um homem para engravidar, não pode recorrer aos centros de PMA, públicos ou privados. Deve ser por isso que há quem arrisque a inseminação artificial caseira, com todas as complicações legais e de saúde inerentes, e o «turismo de fertilização» em países com menos restrições nessa matéria.

A lei portuguesa (32/2006, de 26 de Julho) veda-lhe a PMA, mas em Espanha não há nada que impeça Rubén de ser inseminado com esperma de um dador anónimo. É transexual, mas ainda tem vagina, ovários, trompas e útero, o que aos olhos da lei espanhola lhe confere identidade feminina, sendo que o facto de não ser casado também não é impedimento, já que ao abrigo da lei 14/2006, de 26 de Maio sobre a Reprodução Humana Assistida (é assim que se diz em Espanha) «a mulher poderá ser utilizadora ou receptora das técnicas regulamentadas, independentemente do seu estado civil e da sua orientação sexual». Rubén é espanhol e foi numa clínica em Barcelona que engravidou no início deste ano, depois de rejeitado pelas 155 clínicas de Madrid - o preconceito mora em todo o lado e muitas vezes sobrepõe-se à lei. Rubén abortou às dezassete semanas de gestação e neste momento tenta uma segunda vez.

Por cá, tão cedo não será possível a pessoas como Rubén recorrer aos centros nacionais de PMA, públicos ou privados. A transexualidade faz confusão a muita gente e mais confusão fará a gravidez de um transexual masculino que nasceu mulher mas que até aos 18 anos não «encaixava» no corpo que a natureza lhe deu e decidiu iniciar o processo para se tornar homem. É-o na «alma» e na aparência física também, mas só o será «por inteiro» quando tirar os seus órgão reprodutores femininos e se submeter à cirurgia de redesignação sexual com colocação de um pénis, o que deixou para mais tarde, para quando já tivesse gerado um filho.

Qual é o mal? A pergunta fizemo-la ao juiz desembargador Eurico Reis, na qualidade de cidadão e de presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), entidade a quem compete, justamente, pronunciar-se sobre as questões éticas, sociais e legais da aplicação das técnicas de PMA em Portugal. «Depende do ponto de vista com que observamos o mundo. Há várias perspectivas éticas: há pessoas que acham que qualquer transformação naquilo que a natureza criou é um pecado, uma aberração; a minha perspectiva é diferente. Não sou hedonista, não aceito que o princípio do prazer se deve sobrepor a todos os outros princípios. Do ponto de vista filosófico, sou mais estóico. Defendo que o nosso direito termina onde o direito dos outros começa; temos que ter a noção de que nem tudo o que queremos pode ser alcançado». Em todo o caso, «reconheço que a lei portuguesa da PMA é conservadora» e «seria mais humana se permitisse o acesso às técnicas de PMA a mulheres solteiras férteis e a transexuais como Rubén, desde que exista um projecto parental bem estruturado».

A transexualidade, diz, «pertence ao domínio da privacidade e da intimidade» de cada um, pelo que nem o Estado nem os membros da comunidade têm o direito de interferir se nenhum direito de terceiro estiver a ser violado». Este juiz vai «buscar» à Constituição americana uma frase definidora daquilo que pensa e lamenta que esse conceito não se aplique a mais nenhum outro texto constitucional no mundo: «O direito à busca da felicidade». Não é o direito à felicidade, porque «a felicidade é difícil de definir, não há uma felicidade geral, cada um é feliz à sua maneira, o que pressupõe que se uma pessoa não se identifica com o corpo que a natureza lhe deu, tem o direito de procurar ser feliz, mesmo que para isso tenha de o mudar».

No caso de Rubén, o seu quinhão de felicidade não está só na mudança de corpo e de sexo, está também em ter um filho, em ser «pai», mesmo que para isso tenha de fazer inseminação artificial e ir contra a ética e a moral ditadas por uma sociedade que recusa a diferença e o que foge aos padrões estabelecidos. «Casos como o de Rubén não me fazem confusão, mas percebo que não se pode ignorar uma matriz conservadora que ainda existe e que é fruto de séculos, instituiu-se nos tempos da Inquisição. Foram anos de obscurantismo que só terminaram no dia 25 de Abril de 1974. A democracia no nosso país tem 35 anos e o lastro do passado não é fácil de eliminar de um momento para o outro. Leva tempo».

A lei nacional é conservadora, mas Eurico Reis entende porquê. «A legislação tem de caminhar a par da sociedade», que é como quem diz, tem de reflectir o que vai na «alma» colectiva. «O legislador não pode estar cinco passos à frente do pensamento comunitário, sob pena de fazer leis que não vão funcionar». O presidente do CNPMA está optimista. «Vamos com calma. A sociedade evolui, ou involui, consoante aos casos. Neste em particular, acredito que chegaremos ao dia em que teremos uma lei da PMA em Portugal menos restritiva. Até porque o argumento da natureza... o que é a natureza? A natureza é a diversidade, é a diferença. As pessoas que fogem ao padrão normal são também elas próprias normais, porque foi assim que a natureza as criou. A sociedade devia acolhê-las. Não é tolerá-las, é aceitá-las como pessoas de plenos direitos, é acolhê-las». À luz disto, Eurico Reis considera que o mais importante para as crianças – que é do que se trata quando falamos do caso de Rubén -, sejam filhas de um casal de gays ou de lésbicas, de trangéneros ou de uma mulher ou pai solteiros, «é que sejam amadas e tenham, de preferência desde a gestação, um ambiente emocional estável, com carinho». «O que é preciso é que a criança tenha uma família e a família é o quê? É a família emocional. No último quarto do século XX passamos felizmente da família de interesses para a família de afectos».
por Carla Amaro. Fotografia Rui Coutinho





Sem comentários:

Enviar um comentário