sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O teatro como política contra a política como teatro

Quando Augusto Boal resolveu adaptar para o teatro o apelo de Marx, sugerindo que era tempo dos oprimidos se apropriarem dos meios de produção teatral - ou seja, de deixarem de ser espectadores passivos para assumirem a sua condição de actores - não imaginava talvez que esse seria apenas o primeiro passo de uma longa história que juntaria teatro e política. Uma história que continua, que reuniu no mês passado 12 mil indianos numa marcha pelo país (para fundar a Federação de Teatro do Oprimido) e que juntará umas quantas pessoas em Lisboa na próxima semana, para o I Encontro Nacional de Curingas.

Mas afinal que história é essa? E por que mobiliza hoje o Teatro do Oprimido (TO) umas dezenas de milhar de pessoas em mais de 70 países? A ideia central é simples: aquilo que existe é apenas uma possibilidade, a realidade deve estar sempre aberta a interrogação e mudança e, por isso, podemos usar a linguagem teatral - a capacidade de nos observarmos em acção - para encenarmos episódios da nossa vida e ensaiarmos finais diferentes para as histórias de opressão.
Foi na década de 1970 que se começou a superar o teatro político pelo entendimento do teatro como uma das formas possíveis de fazer política. Ou seja, a substituir um teatro de propaganda revolucionária feita para o povo, por um teatro emancipatório feito pelo povo. O TO entende que não basta promover o acesso a peças feitas por profissionais, porque o importante é permitir que toda a gente possua os meios de dramatização da sua própria realidade. O teatro político não é aquele que impinge soluções determinadas por outros, mas o que dá às pessoas o protagonismo de ensaiar e escolher as soluções que fazem sentido para a sua vida.

Como é que isto se faz? Permitindo a todos que se exprimam através do teatro - "toda a gente pode fazer teatro, até mesmo os actores!" -, levando a representação para o espaço público - "o teatro pode ser feito em todos os lugares, até mesmo nos teatros!" - e transformando o público em "espect-actores" que participam directamente na cena para a mudar. Num espectáculo de teatro-fórum, o público não deve bater palmas no fim, mas invadir o palco para transformar a história.

Nos anos 90, Boal foi eleito vereador no Rio de Janeiro e um novo passo foi dado: por que não utilizar o teatro-fórum para transformar o próprio cidadão em legislador? Assim nasceu o teatro-legislativo: a equipa parlamentar era formada por animadores que dinamizavam, em grupos e associações, sessões de teatro-fórum. Aí se encenavam os problemas concretos vividos e se propunham formas de eles serem resolvidos: através da acção directa na situação, mas também da mudança das leis. O mandato podia então ser devolvido às pessoas: ser revolucionário era mudar a relação dos cidadãos com a política, promovendo a apropriação do poder pelo povo. Assim se combinava organização à volta de assuntos específicos (empregadas domésticas, estudantes, imigrantes, sindicalistas, homossexuais, camponeses, etc.), democracia cultural, acção directa e produção legislativa a partir das soluções propostas nos espectáculos de teatro.

Hoje, o Teatro do Oprimido é usado em diferentes contextos. No Brasil, Boal e a sua equipa trabalham sobretudo em prisões e com o Movimento dos Sem Terra. Noutros países, houve a tendência para esta técnica ser apropriada pelo Estado e pela intervenção social, perdendo em radicalidade e estando menos na posse dos oprimidos que na mão dos técnicos. Mas não tem de ser assim. Em Portugal, o TO dá os primeiros passos: em hospitais, escolas, centros sociais, associações de imigrantes, bairros, comunidades... E vai promovendo a mudança e a discussão sobre os problemas.

Se é difícil entusiasmar as pessoas pela política quando ela é monopolizada por profissionais de promessas e bastidores - a política como teatro - podemos talvez fazer o contrário: recuperar o gosto da política como discussão e acção colectiva, usar a palavra e o corpo - o teatro como política.

José Soeiro

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